Retorna à pauta para julgamento no Supremo Tribunal Federal a ADI 4.357, tratando da inconstitucionalidade da chamada “Emenda do Calote”. Como o mesmo STF julgou inconstitucional recentemente outra Emenda parecida (a 30, que deu 10 anos de moratória em 2000), é razoável presumir que a 62 terá o mesmo destino.
A OAB, que lidera a ADI 4.357, juntamente com muitas outras instituições da sociedade civil, aguarda serenamente o resultado do julgamento, mas, seja ele qual for, o day after exigirá movimentos práticos, objetivos e imediatos para a reestruturação dos precatórios no mundo real. Nada impede, tampouco, que medidas preventivas sejam tomadas, como sugerido a seguir.
Ironicamente, uma solução bastante aceita por especialistas é o refinanciamento de precatórios estaduais e municipais pela União, o que significará um retorno ao chamado “Projeto Jobim”, quando o ministro Nelson Jobim ainda era presidente do STF.
Partamos com uma retrospectiva histórica do relacionamento financeiro recente da União, estados e municípios, sem esquecer que estamos tratando de dívidas judiciais definitivas, transitadas em julgado muitas vezes há décadas, afetando as vidas de milhões de contribuintes. Sim, existem casos polêmicos, mas exceções assim devem ser consideradas dentro de um arcabouço legal civilizado e com as garantias previstas na Constituição.
Em 1998, a União assumiu R$ 101,9 bilhões de dívidas estaduais, sendo R$ 77,5 bilhões refinanciados pelo prazo máximo de 30 anos, a uma taxa de juros real mínima de 6% a.a., R$ 11,4 bilhões a amortizar com receitas de privatizações estaduais e R$ 13 bilhões referentes à diferença de encargos pela rolagem das dívidas entre a data de corte e a data de assinatura dos contratos (valores expressos em reais constantes de 1998). O montante assumido pela União equivalia, à época, a 11,3% do PIB e a 77,9% da dívida líquida de estados e municípios em dezembro de 1998.
No entanto, excluíram-se dessa renegociação os débitos relativos a precatórios vencidos e não pagos, que, estima-se, já somavam algo em torno de R$ 20 bilhões. Razões para a exclusão não faltaram. A primeira, e mais óbvia, foi o aumento do custo, que tal inclusão traria, na renegociação para a União (à época, o subsídio implícito na renegociação, que resulta da diferença entre a taxa de juros contratual e a taxa de juros de mercado, foi estimado entre um mínimo de R$ 26 bilhões e um máximo de R$ 38 bilhões – também a preços constantes de 1998). A segunda, e menos explícita, era a fragilidade dos precatoristas em relação aos demais credores e a falta de vontade política de resolver o problema. Durante este período desde que a dívida foi renegociada (15 anos), foram os precatoristas que subsidiaram os estados a taxas similares às aplicadas na renegociação (juros reais de 6% a.a. – IPCA-E + 0,5% a.m.), com algumas condições até mais vantajosas ao devedor (carência, forma de cálculo do juros). Fazendo uma comparação simples em relação a quanto a União subsidiou a parcela da dívida renegociada, podemos concluir que sobrou para os precatoristas um subsídio de pelo menos R$ 5 bilhões em valores da época.
Mesmo diante dessa vergonhosa situação, os estados e municípios não se acanharam a mais uma vez, em dezembro de 2009, repassarem aos seus credores, os custos do seu descontrole de gastos e o eterno adiamento do ajuste fiscal no âmbito dos governos estaduais e municipais (o que resulta da combinação dos incentivos do federalismo fiscal com a ausência de consenso para a distribuição dos custos do ajuste). Com a aprovação da Emenda Constitucional 62/09, conseguiram rapidamente aumentar seus subsídios, ao impor uma redução do reajuste dos precatórios para o equivalente, hoje, a TR (hoje muito próximo ou igual a zero) mais juros da caderneta de poupança (hoje equivalentes a 5,075%, considerando a mudança implementada pela Lei 12.703/2012). Também impuseram um prazo de mais 15 anos para a quitação dessa dívida (prazo final de 2024 vs. 2027 da renegociação de 1998), basicamente piorando a situação dos precatoristas em relação às condições renegociadas em 1998 com a União, que hoje continuam (apesar de diversas tentativas de governadores e prefeitos em reduzir a taxa mínima de juros) recebendo uma taxa de juros real mínima de 6% a.a!
Hoje, já três anos após a aprovação da Emenda Constitucional 62/09, a situação dos precatoristas continua crônica. Apesar de alguns Estados e municípios estarem respeitando as condições estabelecidas no Regime Especial criado pelo artigo 97 da ADCT, realizando os depósitos mínimos, é evidente a dificuldade dos tribunais (a quem foi delegada a hercúlea tarefa, apesar da carência de sistemas apropriados e de recursos humanos e financeiros) em distribuir os recursos depositados aos precatoristas (respeitando o complexo e irrazoável sistema de pagamentos imposto pela EC 62/09). Além disso, a EC 62/09 falhou ao não estabelecer uma solução aplicável a todas as entidades federativas; e, para piorar, criou enormes lacunas que a Resolução CNJ 115 tentou sanar. No entanto, por se tratar de Resolução, a regulamentação não vem sendo respeitada por muitos Estados e municípios, que tentam tirar vantagem de interpretações absurdas da EC 62/09 com o objetivo de perpetuar o calote em entes públicos com elevado grau de endividamento – no que tange seus estoques de precatório –, como nos casos do Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Paraná, além de centenas de municípios.
Claramente, o Legislativo não cumpriu sua função e optou mais uma vez em ajudar o Estado em prejuízo de seus contribuintes. No entanto, eventualmente já prevendo uma possível declaração de inconstitucionalidade do artigo 97, que introduziu o mais recente calote (como recentemente ocorreu em medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) número 2362, para suspender, por maioria de votos, a eficácia do artigo 2º da Emenda Constitucional nº 30), estabeleceu, no parágrafo § 16 do Art. 100 da EC 62/09, que “a seu critério exclusivo e na forma de lei, a União poderá assumir débitos, oriundos de precatórios, de Estados, Distrito Federal e Municípios, refinanciando-os diretamente.” Até agora, nada de concreto foi feito em relação a utilização desta disposição, porém, é importante destacarmos a possibilidade de uma federalização, principalmente se levando em consideração as constantes investidas de senadores, governadores e prefeitos na promoção de uma nova renegociação das dívidas e na negociação do ICMS interestadual, FPE e FPM. Recentemente pudemos ver um exemplo claro disso quando o prefeito de São Paulo Fernando Haddad, do mesmo partido da presidenta Dilma, em seu discurso de posse, estabeleceu como prioridade a renegociação da dívida com a União.
Antes de mais nada, é importante reconhecermos a realidade. Estamos em um Brasil muito diferente do de 1997/1998, pelo menos do ponto de vista econômico (apesar dos motivos políticos relacionados ao crescimento das dívidas dos governos estaduais e municipais continuarem os mesmos). Saímos de um período de inflação média de quase 9% a.a. (de 1999 a 2004) para 5,7% a.a. (de 2008 a 2012) e taxas Selic de acima de 20% a.a. para taxas estáveis abaixo de 8% a.a. (atualmente em 7,25%). O Brasil se tornou a sétima maior economia do mundo, tendo alcançado o tão desejado grau de investimento (investment grade), poréms continua devendo mais de R$100 bilhões em precatórios para centenas de milhares de contribuintes. Mesmo com todas essas melhorias, é quase utópico o cenário em que a dívida em questão seria paga de uma só vez dado o efeito avassalador que tal saída de caixa causaria aos cofres públicos.
Diante de tamanho desafio, uma conciliação é necessária, minimizando-se ao máximo os prejuízos aos credores. Diferentemente do que ocorreu na década anterior, o custo do subsídio implícito em uma eventual renegociação de dívida entre a União, Estados e municípios, incluindo-se a dívida de precatórios, seria quase nulo dado que a diferença entre a taxa contratual da renegociação de 1997-1998 (juros real de 6% a.a.) e a atual taxa de juros de mercado (hoje um título do governo federal, NTN-B, com prazo de vencimento de 2035 é negociada a uma taxa média de juros real de 4,15%) é negativa, ou seja, o governo federal se financia no mercado a uma taxa de juros real mais baixa do que ela recebe como parte do acordo.
Se, com base no § 16 do Art. 100 da EC 62/09, a União assumisse os débitos de precatórios de Estados, Distrito Federal e municípios, através de emissão de títulos públicos federais com prazo de 15 anos e remuneração equivalente à poupança (TR + 70% da Selic), os atuais precatoristas receberiam títulos que se assemelhariam em termos de risco de crédito a qualquer título público emitido pelo governo federal (NTNs, LTNs, LFTs, TDAs etc.). Atualmente, o estoque da dívida pública federal em mercado supera R$ 1,7 trilhão, sendo extremamente líquida. Ao se padronizar os títulos a serem dados como pagamento em troca dos precatórios (mesmo vencimento, taxa de juros etc.), automaticamente se criará um mercado secundário para esses títulos que potencialmente pode chegar a R$ 100 bilhões (valor equivalente ao estoque estimado de precatórios do país). Cria-se assim a possibilidade dos credores que retiverem esses títulos (com um perfil de risco muito melhor do que o dos atuais precatórios) até o seu vencimento (quando receberão o valor integral de seus precatórios, devidamente corrigidos) ou vendê-los no mercado secundário (onde deveriam ser negociados a um desconto médio de 30% dado o spread negativo entre a TR – índice de “correção” dos precatórios – e o IPCA – índice de atualização das NTN-B). Na atual situação, a grande maioria (senão todos) os credores de precatórios estaduais e municipais ficariam satisfeitos com o recebimento de 70% do valor atualizado de seus precatórios.
Para os Estados e municípios, o custo de tal solução não deveria aumentar. Atualmente sujeitos à EC 62/09 e à Resolução CNJ 115, encontram-se obrigados a quitar toda a sua dívida de precatórios em prazo máximo de 15 anos mediante contribuição mínima de um percentual sobre suas receitas correntes líquidas que permitam a quitação plena desses passivos neste prazo. Ao invés de distribuírem esses recursos para os precatoristas, estes os utilizariam para quitação da dívida assumida com a União (que em contrapartida emitiria os títulos públicos federais em favor dos precatoristas). Fica então a União, soberana e detida de poderes muito acima dos detidos pelos precatoristas, responsável por ajustar os percentuais mínimos da receita corrente líquida a serem destinados para a quitação desta dívida adicional, bem como por negociar a taxa de juros a ser paga pelos Estados e municípios nesses financiamentos (não deixando tal responsabilidade, como atualmente ocorre, para o Judiciário). O risco de crédito da União pode ser mitigado por mecanismo similar ao dispositivo já previsto na EC 62/09, no inciso V do § 10 do Art. 97 da ADCT: “no caso de não liberação tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II do § 1º e os §§ 2º e 6º deste artigo” prevê a possibilidade da União reter os repasses relativos ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios como forma de garantir os pagamentos dos percentuais mínimos estabelecidos para o pagamento de precatórios.”
Ademais, com esta solução, a União poderia esperar uma arrecadação adicional advinda da retenção de imposto de renda sobre os títulos federais oferecidos como pagamento dado que hoje, o imposto é recolhido a medida em que os precatórios são pagos (o que deve ocorrer em até 15 anos) e com a quitação através do mecanismo sugerido, poderia recolher os tributos de uma só vez quando da dação dos novos títulos como pagamento.
Além disto, do ponto de vista operacional, a implementação desta solução implicaria necessariamente na padronização dos sistemas e cálculos relacionados a atualização dos créditos, trabalho que poderia ser realizado por instituição financeira capacitada ou por exemplo pela CETIP que hoje dispõe de sistemas extremamente avançados e já é o ambiente de liquidação de títulos públicos federais como as TDAs (Títulos da Dívida Agrária) que são (como os precatórios) indexados a TR, tirando dos TJs a responsabilidade pela administração das contas criadas pelo regime especial.
Uma solução alternativa que segue o mesmo conceito de “federalização” da dívida representada por precatórios seria a emissão de títulos de dívida de longo prazo pelos próprios Estados e municípios, desde que garantidos pelo governo federal. Os precatoristas receberiam esses títulos e de forma análoga ao descrito anteriormente, teriam a possibilidade de negociá-los no mercado secundário, se assim desejassem. Uma estrutura muito parecida passou a ser utilizada no ano de 2012, quando o Senado aprovou que alguns Estados obtivessem empréstimos denominados em dólares, no mercado internacional, de forma a repagar a dívida com a União, que figurou como garantidora de tais empréstimos. O Mato Grosso foi o primeiro Estado a se valer dessa estrutura, captando US$ 479 milhões a juros de 5% ao ano, patamar substancialmente inferior aos juros que vinham sendo pagos pelo Estado à União, que superavam 10%. Desde então outros Estados (Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Maranhão) buscaram com sucesso a mesma solução, conseguindo inclusive taxas ainda menores (inferiores a 4% ao ano), comprovando o apetite do mercado internacional por créditos garantidos pela União.
As razões apontadas acima são apenas alguns dos motivos pelos quais a “federalização” da dívida de precatórios seria mais fácil e saudável do que a solução abrangida pela EC 62/09. Obviamente implicará em uma negociação politicamente sensível entre a União, Estados e municípios. Para evitar tal “conflito”, no passado, governadores, prefeitos, senadores e deputados preferiram impor a força do Estado sobre a ponta mais fraca: seus contribuintes. Aos precatoristas resta a esperança de que uma ADI ajuizada pela OAB seja aprovada, declarando a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 62. No entanto, caso isso ocorra, o regime anterior passará a valer ficando os estados e municípios sujeitos a sequestros de renda substantivos o que sobrecarregará ainda mais o Judiciário. Soluções práticas e responsáveis poderiam ser implementadas, e a federalização/securitização certamente parece ser uma grande opção para redimir, pelo menos em parte, as violências cometidas por estados e municípios dando a possibilidade de liquidez imediata a todos os seus credores de precatórios que há décadas esperam, sofrendo, para receber o que lhes foi afirmado como de direito por decisão judicial.